O Galo Cego que salvou o Alaor de ser comido pela "bicha"


André Navarro
Um dia eu conheci um pantaneiro extrovertido, de força nos braços e na garganta. Falava alto, sua gargalhada ecoava pelos confins do Pantanal e espantava até onça. E como ele gostava de falar do esturro da onça. Dizia que ela vivia rondando sua casa lá no barranco do rio Paraguai, perto da entrada da Baía do Tuiuiú.
“Cuidado aí menino que essa noite ela levou um cachorro, um branquinho que eu gostava dele”, me avisou o Alaor em uma dessas minhas idas até lá para pescar. Até fiquei assustado, meio ressabiado em ficar ali no barranco onde os pescadores sempre pararam para comer um peixe frito, um ensopado ou mesmo um churrasco grelhado. Mas, logo vi que não era para tanto.
Difícil alguém saber o sobrenome do Alaor. Ele era o Alaor do Tuiuiú ou o Alaor da Berê. Ah! Berê é a Berenice, viúva do Alaor que não menos do que ele, fala alto e gosta de soltar uns palavrões de vez em quando, sempre com aquele jeitão pantaneiro, muito mais macho do que muitos que se dizem machos.

Formavam um casal perfeito Alaor e Berê, até que ele deixou de seguir os conselhos dos médicos, e eram muitos os que frequentavam o local e tratavam dele, não parou de beber nem de fumar e o coração não aguentou tanta carga. Foi pescar lá no céu o velho amigo.

Alaor e eu, na maior prosa

Deixou vários legados, entre eles o da amizade, do companheirismo e da parceria. Não tinha tempo ruim para o Alaor do Tuiuiú. Com chuva ou com sol ele estava sempre disposto e sempre tinha isca, café, comida e uma boa conversa para quem quisesse chegar.
Um dia, acordou cedinho, antes de o sol clarear, como sempre fazia. Na cozinha, já meio alagada pela cheia do Pantanal, coava o café quando a “bicha” mordeu sua perna e tentou se enrolar nele para esmagar seus ossos e depois engoli-lo inteirinho. A tal “bicha” que ele dizia era a maior serpente pantaneira, a sucuri, conhecida no mundo inteiro como anaconda.
O Pantanal quando alaga, vai tomando os barrancos e, muitos ribeirinhos passam tempos com água nas canelas dentro de suas casas, até que resolvem erguer tábuas e viver praticamente pendurados até a água vazar. Mas enquanto ela não vaza, convivem com jacarés, sucuris e outras serpentes, algumas peçonhentas e mortíferas como a cascavel e a boca de sapo.
“Galo, acode Galo”, gritava o Alaor. “socorro Galo, corre aqui que a “bicha” quer me comer”, se desesperava ao sentir a força mortífera da sucuri esvaindo as suas próprias forças já quase sem aguentar segurá-la. A casa ficava a uns cem metros da cozinha que era na beirada do barranco, lugar onde atendia seus clientes e o Galo dormia depois de uma noite que passou até as tantas pescando e tomando uns goles.
“Galo, pelo amor de Deus Galo, desce aqui e me ajuda”, gritava com toda a potência de sua garganta e um gás a mais que recebeu incentivado pela ânsia da ameaça de ser engolido pela sucuri.
Foi aí que o galo acordou e desceu correndo, meio que ziguezagueando sobre as tábuas que faziam a passarela até a cozinha. Sem entender o que estava acontecendo, “Galo Cego”, um sobrinho do Alaor, todo afoito se apoderou do facão bem amolado e tacou na “bicha”, separando a cabeça do corpo.
“Nossa, suspirei aliviado”, me contou o Alaor que não teve vergonha de dizer que teve medo de morrer naquele dia. Nem mesmo as onças pintadas que viviam esturrando por ali lhe causaram tanto pavor.
 Foi um dia que começou de uma forma que o velho pantaneiro jamais imaginaria. Um sufoco que sua força, de sua habilidade com os bichos do mato e de saber se livrar de todos eles, acabou lhe mostrando que a natureza é implacável.
Depois de tudo, o Alaor sentou-se tranquilamente à beira do barranco, xícara de alumínio louçada na mão, um cafezinho quentinho. “E agradeci a Deus por poder ver de novo aquele solzão amarelo subir. Era mais um dia quente como todo pantaneiro gosta de enfrentar. E vamos à luta que a sucuri está morta e, se eu estou vivo, tenho mais é que agradecer a Deus e pescar pra dona Berê fazer o almoço”.



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